Uma boa discussão

POR CARLOS ALBERTO DORIA

Gastronomia brasileira: legitimidade e legibilidade

Na Menu de janeiro 2012 faço uma análise da participação do nossos chefs no Gastronomika, aproveitando para apenas indicar um aspecto bastante complexo do momento atual.

Trata-se de saber até onde é legitimo falarmos em “culinária brasileira” quando usamos ingredientes nativos de consumo restrito e, por outro lado, até onde é legível a brasilidade através de ingredientes, nativos ou não. Ambas as questões dizem das relações dos brasileiros com sua própria culinária.

Legitimidade se refere a algo “brasileiro”, a exemplo do tucupi, mesmo para quem jamais o tenha experimentado – o que é a maioria da população brasileira. Afinal, é nativo e suficientemente enraizado em parcela do nosso vasto território. Legibilidade diz respeito àquilo que, nativo ou exótico aclimatado, é reconhecido claramente como “brasileiro”, a exemplo do arroz com feijão que todo mundo conhece. O tucupi é amazonico antes de ser “brasileiro” e só por nacionalismo dizemos “é nosso”; o feijão é nacional e popular, está em quase todos os cantos do pais em centenas de variedades.

A “amazonidade” como produto

Alex Atala, há anos, tem feito um esforço hercúleo para se apropriar da “amazonidade” em nossa culinária de ponta. Para tanto, lança mão do tucupi, jambu, priprioca, formigas. Sabemos identificar o quanto de simbólico há nisso tudo, mas só o tucupi é “popular” na Amazonia, e a priprioca sequer é comestível para os caboclos. A formiga – reminiscência das culinárias indígenas de norte a sul do país – hoje ocupa o papel de metonímia da culinária amazônica, tanto em Atala como em Mara Sales.

A Amazonia construída, o cerrado construído à mesa, assim como as velhas tradições que caíram em desuso, são invocadas mais licenças poéticas do que outra coisa. Para lhes dar vitalidade há um contínuo arrombamento de portas abertas, só possível porque essas portas estão distantes da maioria dos brasileiros e estrangeiros. Atala, por exemplo, nos dá conta de uma receita de tucupi com formiga, “descoberto” em São Gabriel da Cachoeira – preparação tradicional que Dna Brazi já havia apresentado em São Paulo, em 2009, e à qual o conde Ermano Stradelli (fonte básica de Camara Cascudo sobre a Amazônia) já se referira no século XIX. A rigor, em vez de “descoberta” seria melhor dizer “repertório em desuso”.

Helena Rizzo também se encaminhou um pouco por ai. Em suas pesquisas, ela já utilizou o puxuri, assim como hoje utiliza o licuri fresco. Tudo isso, é claro, vai traçando um perfil culinário legitimamente brasileiro. Mas é um Brasil estranho à mesa para os próprios brasileiros. Em outras palavras, um Brasil quase ilegível, para não dizer incomível ou incomido. Ele, de fato, só existe – e brilha – nos restaurantes exclusivos de São Paulo.

O que une tudo isso é uma ideia de culinária brasileira, mais do que uma prática alimentar comum aos brasileiros. A distância entre uma coisa e outra se explica por vários fatores: a imensidão do território e o isolamento entre suas várias culinárias; os diferentes hábitos alimentares das classes sociais; o conceito “em alta” de brasilidade, etc.

Mas a própria estrutura do ensino da gastronomia brasileira não encontra o seu caminho para revelar um Brasil íntegro à mesa. É incapaz de definir essa culinária e dela tratar, a não ser esquartejando-a. Uma faculdade de gastronomia propõe um curso de cozinhas regionais do Sul, do Sudeste I, do Sudeste II, do Centro-Oeste, do Norte, do Nordeste I, II, III e IV! E que cada futuro chef componha seu próprio samba do crioulo doido.

A banalidade do popular não é obstáculo à gastronomia

Por outro lado, no mesmo Gastronomika, Rodrigo Oliveira mostrou que segue um caminho inverso: não persegue ingredientes raros e se debruça sobre os mais corriqueiros, como seu “mocofava”, seu torresmo ou seu “escondidinho” atestam. A pesquisa de Rodrigo toma por base o comer popular, fazendo variações em torno dele – inclusive variações técnicas. Qualquer brasileiro reconhece a legibilidade de seus pratos, independente de gostar ou não. Simplesmente não há qualquer estranhamento, a não ser algum motivado por perícia técnica.

Esses dois caminhos mostram a diferença entre legibilidade e legitimidade: tudo o que é “brasileiro”, de uma perspectiva nacionalista, que toma os ingredientes como constitutivos da Nação, é legítimo; tudo o que é popular, vulgar, é legível, independente da origem dos ingredientes.

É exatamente isso que faz da gastronomia praticada por Roberta Sudbrack um caso único: os ingredientes que ela escolhe são legíveis, e com boa dose de legitimidade, no sentido antes apontado. Isso faz com que admiremos sobretudo os ângulos inusitados pelos quais agarra os ingredientes mais simples, como o quiabo ou o milho. Mesmo assim, ela parece temer uma espécie de violação à tradição, dadas as sucessivas referencias que faz à continuidade entre a sua culinária e o mundo costumeiro.

Ora, uma gastronomia nacional de ponta talvez dependa, para se afirmar aqui, mais da legibilidade do que da legitimidade. No exterior, talvez seja o inverso, dado que a audiência está mais interessada em conhecer a Amazonia do que o Brasil em geral.

Um exemplo estrangeiro

Se observarmos de perto outras experiências nacionais, como a da geração de Adrià, ela nos indica a “mediterranização” da cozinha espanhola como a fase decisiva para a sua gastronomia, quando ele e um grupo de jovens cozinheiros mergulharam na identificação dos sabores reconhecidos pelos espanhóis.

O bacalhau pil-pil, os produtos do porco, a merluza, a cebola, o alho, a batata, os pimentões, os frutos do mar e assim por diante, forneceram o terreno sólido, popular, para os experimentos técnicos consagrados (descontrução, reconstrução, baixa-temperatura, etc) que se disseminaram no País Basco e na Cataluña. Hoje essa culinária apresenta infinitas variações pirotécnicas – fruto de um feliz envolvimento da universidade na pesquisa culinária – sem ter se distanciado daquela base de sabores tão facilmente reconhecíveis. Os espanhóis vanguardistas nunca abriram mão da legibilidade.

Então, por que se privilegia hoje, entre nós, na gastronomia de ponta, a busca da legitimidade em detrimento da legibilidade? Em primeiro lugar temos a nossa história. Desde o século XIX as elites brasileiros passaram a tomar a cultura estrangeira como modelo à mesa e, pois, muito facilmente passaram a desejar uma culinária francesa (como, aliás, na maior parte dos países). Isso resultou em uma dualidade notável: há o comer popular e há o comer das elites.

O comer popular apresenta uma riqueza e diversidade que depende mais dos ecossistemas regionais do que dos suprimentos externos e, inversamente, a alimentação urbana das classes médias e altas depende mais das modas externas e dos fluxos de importação, sendo relativamente independente dos ecossistemas brasileiros. Dai o desconhecimento das culinárias regionais e os ditos “problemas de logística” que deixam produtos legitimamente brasileiros distantes dos grandes mercados nacionais. Mal conhecemos no Sudeste a riqueza das farinhas de mandioca do Norte. Simplesmente ela não nos interessa.

A possibilidade da conciliação

Como conciliar esses dois Brasis comestíveis? O que nossos chefs da vanguarda fazem é buscar comunicações com a alimentação popular, reinscrevendo-a no cardápio das elites; mas o fazem promovendo deslocamentos e “misturando” produtos de ecossistemas diversos com perda de legibilidade do conjunto. Assim, é pouco provável que signos da culinária popular da Amazonia possam ir além dos círculos elitizados do Sudeste. O pirarucu é um exemplo: o bacalhau ainda é mais popular do que ele, embora este tenha, historicamente, substituido o bacalhau em largas parcelas do território nacional. Hoje o pirarucu é um produto de luxo.

Mesmo em relação a produtos comuns, como o porco, a diferenciação das partes apreciadas é notável. Os “miúdos”, no Brasil, se tornaram signo de pobreza, ao passo que na Europa nunca perderam o vínculo com a culinária tradicional, de elite ou popular – ambas irmanadas na velha ruralidade das suas origens e tradições. As elites brasileiras preferem o lombo de porco, o filé mignon. Sardinha é outro exemplo curioso: popular, raramente se come em restaurantes de classe média ou alta.

Os chefs brasileiros procuram solucionar a ruptura entre o popular e o elitismo apelando para uma idéia de “terroir” que quase se confunde com uma posição no GPS, deixando de lado a rica vivência cultural que faz parte das emoções do comer e, assim, apostando numa espécie de exotismo interno. O tucupi, quando aparece nos restaurantes paulistanos estrelados, tem uma legibilidade mais próxima da cozinha tailandesa, embora os chefs insistam na tecla da sua insuperável legitimidade.

A ideia de terroir, reforçada como tendência graças à projeção internacional do restaurante Noma, pode ser uma rima, mas não é uma solução.O desafio é se encontrar, manter a legibilidade, nos inúmeros territórios brasileiros; não se perder neles, como ocorre ao fracionarmos o país nos seus regionalismos fechados sobre si.

Conciliar legitimidade (enraizamento territorial) e legibilidade (enraizamento histórico no sistema culinário no qual comemos) é o caminho mais difícil. Exige dosar o exótico de nós mesmos com a banalidade de nós mesmos. Exige mergulhos no óbvio – feijões, farinhas de mandioca, derivados do milho, interiores de animais, frutas mais comuns, etc – com leveza, clareza, criatividade e, sobretudo, palatabilidade. A aceitação de cozinhas tão distintas, como a japonesa, e de ingredientes tão “estranhos”, como o jambu, bem mostram a abertura do público para as novas experiências. É tudo uma questão de tempo e de persistência.

Mas talvez o momento seja único em nossa história gastronomica, graças a uma maior tolerância às novidades. Tudo é questão de saber aproveita-lo, como os espanhóis – tão admirados – um dia souberam mergulhar na culinária popular de seus países para revelar uma modernidade insuspeitada.

Fonte: e-Boca Livre: Gastronomia brasileira: legitimidade e legibilidade.

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